quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Docareterapia - Realmente se Importe

Tanto quando estamos diante da morte, como diante do surgimento da vida acabamos olhando para nós mesmos. Questionamos o que nos tornamos desde que nascemos, o que seremos até o dia da nossa morte. E se parássemos um pouco de pensar em nós e imaginássemos que cada pessoa que passa por nossas mãos é mais do que um figurante, tem uma história própria recheada de medos e sonhos? Quem ele foi até chegar em você, quem ele será depois? Diante de nós uma criança. Um recém nascido. Um ser totipotente. Ele tem o potencial de se tornar o que quiser.

Ele pode descobrir a cura da AIDS, talvez até a cura de doenças que ainda desconhecemos, pode descobrir um novo planeta que contenha água, pode lutar pela paz mundial, pode acabar com a fome, pode nos encantar com sua música... Ou pode não fazer nada disso e não marcar a história da humanidade. Talvez seu nome nunca esteja nos livros, e ainda assim será importante por ser simplesmente quem ele é. Por casar ou não , ter filhos ou não, por cuidar deles. Certamente ele será a vida de alguém, e alguém será a sua vida. E é isso que nós fazemos: cuidamos da vida dos outros. Vida que talvez não tenha nem tanto valor para quem vive, mas seja inestimável para quem ama...

Ou talvez aquela mesma criança que você ajudou a nascer, mate alguém anos mais tarde. Mate milhares de pessoas anos mais tarde. Talvez ela roube o pão na padaria. Talvez ela resolva roubar uma nação inteira chegando em Brasília. Talvez ela sofra mutação e se torne um monstro. O que leva uma célula benigna, uma vida benigna a se tornar um câncer? A maneira mais simples de explicar isso é dizer que existem fatores internos ( uma pré-disposião) e fatores externos.



Por mais que a medicina avance, acredito que nunca vamos conseguir desenvolver uma técnica cirúrgica que consiga concertar a índole das pessoas. Ou vamos? Onde fica a índole? Em que parte do nosso coração se esconde a nossa alma? Ou será em que área do córtex cerebral? Estudos revelam que de fato existem partes do nosso cérebro ligadas diretamente a nossa personalidade e se lesadas, uma cirurgia ali pode até salvar a sua vida, mas você não será mais o mesmo. A síndrome do duplo Y também está relacionada com a agressividade, de acordo com uma pesquisa feita num presídio nos EUA, a maioria dos assassinos e estupradores eram "super machos". Mas seria genético ser mal?




Ao mesmo tempo em que a medicina procura solucionar os problemas internos, não podemos esquecer que os problemas externos são nossa responsabilidade também. Um galão de gasolina queima sozinho? Não, não queima. Ele tem tudo pra provocar uma explosão, e não explode se não houver uma faísca. Se não podemos nos livrar do galão de gasolina, podemos apagar a faísca. Nós conhecemos muitos fatores externos que contribuem para o surgimento de uma célula cancerosa. Fumo, álcool, vírus, substâncias químicas, exposição a radiação. Por exemplo? Chernobyl. Anos depois o índice de leucemia estava nas alturas. Hiroshima: Milhares morreram instantaneamente, milhões morreram depois. E a pergunta: quantas bombas não estão estourando nos nossos dias? Não estou mais falando dessas bombas que transformam as células, agora estou falando das que transformam as pessoas. E é engraçado, pra não dizer trágico, como uma única célula maligna pode se multiplicar a ponto de ir destruindo tudo ao seu redor e levar a última instância a morte do indivíduo. É engraçado, para não dizer trágico, como a violência só gera mais violência e muitas vezes uma vida benigna quando sujeita a esses fatores externos acaba sofrendo mutação: violência. Trágico como a imoralidade, gera imoralidade. Como a falta de valores, de princípios, de amor ao próximo, de humanidade... Como a falta de 'benignidade' chega ao ponto de pais venderem suas filhinhas para se prostituir ... Quanto vale a índole de alguém?



Quando vale a inocência de uma criança? Vendida por 10.000 reais.
E eu como médico o que tenho a ver com isso? Se essa mesma criança, anos depois contrai uma doença venérea e vai se tratar com você? Ou se ela se contamina com o HIV? Aí, você pode fazer algo por ela? Só a partir daí você tem a ver com isso? É preciso esperar o pior, para tomar uma atitude? Infelizmente vivemos a medicina 'paliativa'. Precisamos aprender a viver a medicina preventiva. Não sejamos médicos medíocres, pessoas medíocres. Não sejamos médicos de um homem só, cuidemos da sociedade. Vejamos além da cólera, além da vibrio cholerae. Vejamos a falta de saneamento básico. Vejamos a desigualdade social. Vejamos o que temos feito para transformar essa realidade. Vejamos que eles precisam de nós. E realmente nos importemos.

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