quinta-feira, 3 de junho de 2010

Ao Cadáver Desconhecido



Há quem diga que os médicos tornam-se pessoas frias, calculistas, acostumadas com o sofrimento e com a morte. Como se médico não se envolvesse, não chorasse. Como se médico estivesse acima dos reles sentimentos humanos, distante, nas alturas se auto-intitulando semideus. Como se a doença e a morte nunca batessem na sua porta... Eu sei que parte desse conceito é culpa deles, mas fiquem sabendo que é tudo uma grande mentira.


O que acontece é que temos a morte como nossa professora. Ela se faz bem presente desde o início da nossa formação. Durante as aulas de anatomia, nos amontoamos todos ao redor de um cadáver, identificamos estruturas e realizamos procedimentos: Dissecamos, suturamos, intubamos, puncionamos... carregamos o seu coração com as nossas mãos. E depois disso ainda o chamamos de desconhecido! Tsc Tsc Tsc. Engraçado que no começo da faculdade, estamos mais acostumado com o cadáver do que com a vida. O paciente "de verdade" a princípio nos assusta. E chega até a ser irônico que a própria morte nos ensine a salvar vidas. A morte nossa inimiga, a morte nossa professora. Nunca vou entendê-la.

Depois de 2 anos, nos econtrando semanalmente com ela num laboratório de anatomia, finalmente vamos para o hospital. E mais cedo ou mais tarde, infelizmente acabamos descobrindo que ela também está lá. E que ela não acomete só "indigentes"... mas pode levar uma senhorinha que lembrava a sua avó, um bebê ( que você queria ter...), um jovem adulto. Você. Eu. Somos todos suceptiveis. Estamos todos vulneraveis. E é muito mais difícil encarar a morte desse jeito... por isso alguns médicos fingem que a vida é uma grande laboratório de anatomia, branco e gelado - e que as pessoas são todos grandes 'desconhecidos'. Não é todo mundo que tem estômago para ter tantos encontros com ela e ainda assim continuar cheio de vida. Não estou justificando, estou explicando. Nada justifica. Na verdade, todo mundo sabe que medicina é desgastante. E como já dizia o filósofo "se não guenta pra que veio"? Mas pra quem prefre tratar as pessoas como peças anatômicas ... o IML tá pagando bem... bom ficar por lá.


'Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido,
lembra-te de que este corpo nasceu do amor de duas almas
cresceu embalado pela fé e esperança daquele que, em seu seio,
o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens, por certo
amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que aprtiram, acalentou um amanhã feliz
e agora jaz na fria lousa, sem que, por ele, se tivesse derramado uma lágrima sequer,
sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe, mas o destino
inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir à humanidade que
por ele passou indiferente'

Karl Rokitansky

* paciente faleceu hoje no plantão...

Um comentário:

  1. Own Nine..
    Entendo essa sua catarse!
    Muitos amigos meus estudam medicina. E alguns sempre comentam dessa mesma angústia.

    A verdade é que todos nós temos medo dela.
    Nos esquecemos que ela foi vencida na cruz. Por temos medo, pensamos que os profissionais médicos são insensíveis porque o medo de vocês foi domesticado pela convivência com ela.

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